sábado, 27 de setembro de 2014

O coração vermelho do homem sem guia


Brevíssimo romance com um livro de poemas dentro, “O sol partido” (2014), do escritor baiano João Mendonça, conta uma história de amizade e amadurecimento, composta pelos encontros e desencontros de cinco rapazes numa Salvador ensolarada. O enredo carrega um forte sentimento de comunhão juvenil que é rompido pela constatação, por parte do narrador, do distanciamento das relações e da finitude dos verões despreocupados e felizes. Ao contrário dos dois amigos que vão embora – um emigrado para o gelado norte europeu (Dinamarca), o outro para as terras frias ao sul (Argentina) –, o narrador se fixa em sua cidade calorosa, sem abandonar jamais o terreno familiar de ruas e parques. Num gesto memorialístico, ele tenta tirar uma lição de vida das separações quase sempre inevitáveis que o tempo provoca.

Com certa dose de realidade, alguns logradouros e lugares verdadeiros de Salvador são citados (Instituto Alemão, Sebo de Brandão), mas tudo acontece num mundo paralelo maravilhoso, onde as pessoas podem (literalmente) voar. Beirando o terreno onírico e alegórico da fábula, rezas e danças em grupo confluem para rituais de voo coletivo, liderados pelo ousado Rasgo, que atrai os amigos Roque, o narrador e um casal (“meu amigo” e sua mulher, Marikó) a explorar suas asas: “No retorno do voo, no controle da respiração, voltávamos a habitar o mundo sem nos preocupar se estávamos imersos na realidade ou não” (p. 17). Enquanto todos planam no ar e brincam nos galhos das árvores, um outro personagem, Coruja, permanece confinado em casa, num exílio íntimo interrompido somente pelos pequenos poemas que escreve e envia pelo celular para “pessoas ilusórias, mas reais, pessoas que sua imaginação criava” (p. 39).

São 70 poemetos (alguns breves como aforismos) que o leitor encontra agrupados em 13 blocos colocados entre os 13 curtos capítulos. A justaposição de trechos narrativos em prosa e pequenas sequências de poemas curtos, sem relação clara entre si, gera um ritmo de leitura próprio, que desafia o leitor a uma apreensão dos fragmentos em um compósito coeso. Essa dinâmica de leitura do todo e das partes não cessa ao longo de todo o livro, garantindo a abertura do sentido do texto. Após a palavra “Fim”, encontra-se, ainda, um poema um pouco mais longo, que contribui para ampliar o quadro dos gêneros literários presentes em “O sol partido”.

Essa estrutura fragmentada não é fortuita e reforça a temática da separação dos amigos, que também se expressa no título: “sol partido” porque, ícone e síntese da cidade e de uma época da vida, a estrela sob a qual todos se reuniam, e em torno da qual tinham suas experiências de descoberta, em algum momento se quebrou (partiu-se) ou se foi com o anoitecer (partiu). Imagens ligadas ao céu são frequentes no livro, muitas vezes associadas com a subjetividade ou a emoção: “O sol é vermelho e estava dentro do meu coração” (p. 23). Na mesma linha, alguns poemas se destacam, como este: “Tempestade de sol / Banhando a manhã / Espalhando amarelo / Colorindo de azul / de verde / de dia / o coração vermelho do homem sem guia” (p. 50).

O afastamento dos amigos que um dia foram tão próximos permeia vários dos poemas, como o da página 71: “Caminhamos por / caminhos diferentes. Sonhamos com / ninhos diferentes / nos portos seguros / que, juntos, um dia, desenhamos”. O narrador, por sua vez, vê a si e a seu grupo de companheiros como um bando de pássaros que aprendem a voar juntos – “Só são livres os pássaros acompanhados” (p. 13) –, mas logo percebe que cada um precisa partir para sua viagem individual.

 “O sol partido” é um livro sobre certos momentos de felicidade simples e efêmera e sobre uma fase da vida em que a despreocupação é a tônica dos pensamentos e dos dias de quem tem o futuro pela frente. Faz pensar, com alguma nostalgia, em tardes de cerveja, música e poesia: “Meu amigo chegou trazendo dúzias de laranjas (...) Sentamos nós três (...) e conversamos durante a tarde sem fim. Conversamos sobre a alegria das crianças, sobre a força do coração, o perigo dos sonhos, a amizade entre povos diferentes e o fim da vida (...)” (p. 38).

João Mendonça é jornalista e publicou anteriormente o volume de crônicas e poemas “Tá gripado? Coma gelo!” (2007). “O sol partido” é publicação resultante de edital de literatura da Secretaria de Cultura da Bahia. Com a presença do autor, o livro foi lançado em Vitória no dia 11 de setembro, no bar Cochicho (Rua da Lama). Sendo uma edição do autor, “O sol partido” pode ser adquirido, ao preço de R$ 20,00, através do correio eletrônico jjmaiamendonca@gmail.com.

Texto publicado no caderno "Pensar" do jornal "A Gazeta" de Vitória (ES) do dia 27/09/2014