sábado, 29 de novembro de 2014

Uma voz de desencanto nos pampas


A maior parte da obra do escritor e intelectual argentino Ezequiel Martínez Estrada (1895-1964) foi dedicada a investigar a formação sócio-cultural e os problemas históricos de seu país e da América de língua espanhola. Autor de dezenas de livros escritos entre as décadas de 1920 e 1960, incluindo poesia, conto, teatro e crítica literária, ele notabilizou-se sobretudo pelo ensaio, gênero em que é considerado um dos nomes mais importantes na Argentina, em especial com “Radiografía de la pampa” (“Radiografia do pampa”, sem tradução no Brasil), de 1933, seu trabalho mais lembrado e estudado.

No ano em que em que se completam 50 anos de sua morte – ocorrida em 4 de novembro de 1964 –, a análise que Martínez Estrada desenvolveu a respeito das raízes da perpétua crise argentina volta a ser discutida. Em outubro, a editora Sudamericana lançou a biografia “La amargura metódica – Vida y obra de Ezequiel Martínez Estrada”, de Christian Ferrer, resultado de vários anos de pesquisa. Na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires organizou-se em 4 de novembro uma homenagem com debate entre especialistas e apresentação teatral de trechos da obra do escritor.

Martínez Estrada nasceu em San José de la Esquina, província de Santa Fe, em 1895. Com a separação dos pais e a desagregação familiar, ele se viu, aos 15 anos, impedido de prosseguir os estudos secundários. Nessa idade instala-se em Buenos Aires, ingressa no serviço público (no Correio Central, onde trabalhou até aposentar-se) e inicia sua formação de intelectual autodidata, aprofundada ao tornar-se professor de literatura do Colégio Nacional (1923). Não pertencia a grupos literários, embora eventualmente colaborasse com a revista “Sur”, de Victoria Ocampo.

Contestador, defendia posições anti-imperialistas, mas visitou os Estados Unidos (em 1942, a convite do Departamento de Estado), onde admirou alguns aspectos do país, e a União Soviética (em 1957), tendo disparado alfinetadas contra o sistema comunista. Seus escritos e sua atuação foram marcados por forte viés político, em particular o combate ao peronismo e aos recorrentes golpes militares argentinos e uma breve e intensa adesão ao governo revolucionário cubano, entre 1960 e 1962.

Radiografía de la pampa”, obra capital de Martínez Estrada, é um longo ensaio de interpretação nacional escrito num momento traumático da história argentina: o golpe militar de 1930, que derrubou o presidente eleito Yrigoyen e empossou o general Uriburu. Naquele momento já um poeta reconhecido e premiado, Martínez Estrada é tomado pela indignação política e dá por encerrada sua “adolescência literária”: abandona a poesia e volta-se para o ensaio, como parte de um esforço de compreensão da formação do país e de seus problemas na modernidade.

Nesse contexto, “Radiografía” pertence à leva de ensaios crítico-culturais que marcaram as primeiras décadas do século XX em diversos países da América Latina: no Brasil, com Gilberto Freyre e Sergio Buarque; no México, com Alfonso Reyes e Samuel Ramos; no Peru, com Haya de La Torre, entre outros. Sobre “Radiografía”, escreve Leo Pollmann que, no livro, o “pampa é (...) uma metonímia da Argentina, porque a análise, a radiografia, não se limita ao interior e aos pampas: seu assunto é a Argentina inteira com suas estruturas pampeanas que, segundo Martínez Estrada, abrangem também Buenos Aires”.

No referido ensaio, Martínez Estrada retoma a dicotomia entre civilização e barbárie estabelecida por Domingos Sarmiento (1811-1888) para caracterizar a formação argentina: a tensão entre um país considerado “civilizado”, “europeu” (Buenos Aires), e uma vasta amplidão selvagem, quase desabitada (o pampa ou “desierto”). Com a independência, Buenos Aires assume o papel hegemônico antes ocupado pela Espanha com relação ao território: “Buenos Aires de um lado e nada do outro”. Mas, ao contrário de Sarmiento, Martínez Estrada não vê a possibilidade de progresso, pois a metrópole não passa de uma “grande aldeia”: a luta do homem contra as adversidades naturais teria resultado numa vitória apenas aparente da capital sobre o pampa, e as estruturas psicológicas e sociais do deserto continuavam a incidir sobre a estrutura urbana.

Em um estilo vigoroso, poético e filosófico – saudado por Jorge Luis Borges como de uma “eficácia mortal” –, “Radiografia” analisa a paisagem, a ocupação do território e os tipos humanos (o índio, “gaucho”, o “compadre”, o europeu recém-emigrado, o homem anônimo da metrópole portenha), sempre de uma perspectiva crítica e desencantada. Para Martínez Estrada, a Argentina (e por extensão, a América) é resultado de um erro, agravado e multiplicado pela história posterior. Recorrendo à psicanálise freudiana como método de compreensão das estruturas fundamentais da nação, ele identifica nas origens do país uma experiência traumática que condicionou todo o seu desenvolvimento: a violência do europeu contra a mulher índia teria produzido a psicologia do filho humilhado, uma atitude reativa frente ao passado e à sociedade em geral. “As uniões casuais do invasor com a mulher subjugada deixavam uma consequência irremediável no mestiço, que, chegada sua hora, se voltaria contra o passado e a sociedade (...). Os filhos do concubinato seguiam os costumes de seus pais, mas no fundo de suas consciências não estavam satisfeitos. Não tinham lar, eram párias da pradaria (...)”, escreve em “Radiografia”.

Anos depois, o autor definiria sua “Radiografia” como uma espécie de “apocalipse” bíblico, uma “revelação ou exposição de uma realidade profunda”. Nessa interpretação pessimista da história e do caráter argentinos transparecem suas leituras de autores como Simmel, Spengler e Nietzsche (sobre este último Martínez Estrada escreveu um livro de ensaios, de 1947) e uma visão fatalista que não se limita ao país, estendendo-se a todo o continente, e, por fim, a toda a civilização ocidental.

Além de “Radiografía de la pampa”, Martínez Estrada produziu inúmeros ensaios tratando de temas ligados a seu país (ele se considerava “enfermo de Argentina”). Em “La cabeza de Goliat – Microscopía de Buenos Aires” (1940), escreveu sobre a metrópole portenha, concebendo a metáfora da capital como um polvo que oprime o interior do país com seus tentáculos. Outros livros do autor são “Sarmiento” (1946), sobre o escritor romântico e líder político do século XIX; “Muerte y transfiguración de Martín Fierro” (1948), sobre a obra do poeta gauchesco José Hernández; “El hermano Quiroga” (1957), sobre o escritor uruguaio. Seu último trabalho de fôlego publicado em vida foi “Diferenças e semelhanças entre os países da América Latina” (1962), que traça uma visão geral do continente e estabelece relações entre fatos ocorridos em tempos e lugares diversos.

A obra de Martínez Estrada permanece inédita no Brasil. O catálogo online da Biblioteca Nacional brasileira não localiza nenhum livro dele traduzido para português. Encontramos apenas uma edição brasileira do pequeno panfleto anti-imperialista “A verdadeira história de Tio Sam” (editora Fulgor, 1963). Ademais de não ter sido traduzido, Martínez Estrada é pouco conhecido no Brasil mesmo entre estudiosos de literatura hispanoamericana ou argentina. Tal situação possivelmente se deve, pelo menos em parte, ao relativo desconhecimento da obra de Martínez Estrada na própria Argentina, motivado pelo ostracismo sofrido pelo autor por razões políticas. A partir de 1956, com a deposição do presidente Perón, a ascensão de uma nova ditadura militar e a divisão da sociedade argentina entre entusiastas e opositores ao novo regime, Martínez Estrada foi escanteado por numerosos escritores, situados tanto à direita quanto à esquerda. Em textos desse período, Martínez Estrada dedicou-se a denunciar os núcleos de poder integrantes do aparato estatal sustentador do regime: “a justiça, o governo, o clero, o magistério, a banca, o quartel e a burocracia”, sem esquecer a imprensa e os intelectuais coniventes com a ditadura. Em discussão travada pelas páginas dos jornais Martínez Estrada criticou a guinada conservadora de Borges, recém-empossado diretor da Biblioteca Nacional, a quem definiu como “bajulador assalariado”; Borges, por sua vez, retrucou, chamando-o de “sagrado energúmeno” (alusão ao profeta Ezequiel).

Curiosamente, os dois escritores já haviam sido relativamente próximos. Borges saudou o lançamento de “Radiografía” e, tempos depois, diria que o lugar isolado de Martínez Estrada no panorama da literatura argentina se devia, em parte, a sua própria excelência: “Não projetou uma única sombra, não foi fundador de uma escola. Foi um ápice, não um ponto de partida. Por conseguinte, é esquecido ou ignorado.” O exigente Borges também elogiou a poesia de Martínez Estrada, a quem considerava uma das maiores vozes poéticas do país: “sua admirável poesia foi apagada por uma vasta obra em prosa”. Borges também o incluiu como um dos personagens ficcionais do conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, escrito em 1940 e incluído no livro “Ficções”.

Em anos recentes a obra de Ezequiel Martínez Estrada tem sido reeditada pela Interzona, de Buenos Aires. É o caso do volume de contos “Juan Florido/Marta Riquelme”, da peça em versos “Títeres de pies ligeros”, do romance inacabado “Conspiración en el país de Tata Batata”, da seleção de cartas e discursos “Mensajes” e da correspondência entre Martínez Estrada e Victoria Ocampo (“Epistolario”). Outro volume de contos, “La inundación/La cosecha”, saiu em 2010 pela editora 17grises, da cidade de Bahía Blanca. “Coplas de ciego” (1959), seu último livro de poemas, publicado já na maturidade, foi reeditado em 2011 pela editora da Universidade Nacional del Sur, da cidade de Santiago del Estero. E em 2008 a Biblioteca Nacional argentina lançou o ensaio “Filosofia do xadrez”, jogo do qual Martínez Estrada foi um aficionado e um estudioso durante toda a vida (a obra começou a ser escrita ainda nos anos 1920 e permaneceu inédita por quase 50 anos após a morte do autor).
Texto publicado no caderno "Pensar" do jornal "A Gazeta" de Vitória (ES) do dia 29/11/2014

sábado, 8 de novembro de 2014


As coisas “livres no olhar de cada um”

Wladimir Cazé [1]

Neste seu primeiro livro, Rodrigo Caldeira lança um olhar amoroso e lúcido à cidade, à mulher, ao indivíduo cindido dos dias de hoje e à tradição poética brasileira, acionando algumas das múltiplas lentes e filtros que um escritor tem à mão: a mirada social; o enlevo amoroso e o encontro erótico; a revisão-releitura de textos-chave da nossa modernidade; os reflexos (e reflexões) do eu partido; a contemplação meditativa sobre o tempo e a vida. São esses os principais temas que o poeta escolhe e se dedica a escrutinar em mais de 50 poemas de estilos e formatos variados, todos eles, no entanto, perpassados por uma única dicção.
 Na peça de abertura, “Identidade”, o poeta se apresenta e expõe suas referências, sem culpa, num tributo ao cânone modernista (Drummond, Pessoa, Adélia, Bandeira) que reconhece e incorpora (para superá-la) certa angústia da influência – tema caro ao autor, que em seu mestrado em letras pela Universidade Federal do Espírito Santo estudou a presença da poesia de Drummond nos primeiros escritos de João Cabral de Melo Neto. Essa reverência à tradição é um traço marcante de Inventário dos olhos e atravessa o volume do começo ao fim. Em compensação, já meio caminho andado livro adentro, o leitor se depara com um poema quase raivoso como “Raiz”, que alude a certa planta drummondiana para, com ousadia, afirmar a própria voz:

Enterrarei meu corpo sob esse chão cinza
e feito raiz quebrarei os paralepípedos:
uma estranha árvore na confusão do tráfego.

(...)

Ninguém passará sobre meu corpo impunemente.

“Raiz” também descortina o tema do excluído social, figura que se fará recorrente no conjunto de textos, sempre pelo viés da solidariedade indignada e de certa sensação de impotência, como no poema “Fingidor”:

(...)

(Há no sinal vermelho olhos de crianças
não verdesperanças – olhos pretos de fomes infantis
reletidas nos vidros que se fecham)
(...)

           O poeta fita o espaço urbano e percebe que nesse cenário não há lugar para a poesia: habita um “(...) jardim de pedras / onde um poema não resistirá ao peso das flores mortas”. Mas mesmo diante das adversidades, ele, gauche que é, ergue sua bandeira e escreve seu poema-construção – mostrando-se ciente, por outro lado, de que a realidade vista e vivida está sempre aquém e além de qualquer ideia ou emoção que o texto possa enunciar (como explicita o poema “Amar: verbo incurável”, no qual se lê: “tardo com palavras / o que os olhos já dizem ao léu”).
Em “Pontilhismo por uma paixão”, o poema assume a voz de um quadro (uma pintura) e desenha uma cena íntima, que tem lugar em algum momento da madrugada. Tristeza e desejo se confundem com os corpos dos amantes sob a luz difusa. Termo proveniente da história da arte, pontilhismo é o nome de uma técnica de pintura, surgida depois do apogeu do impressionismo, na qual pequenas formas e manchas coloridas são aplicadas na tela pelo artista, de modo que, ao se reunirem opticamente pelo olhar do observador, adquirem, à distância, os contornos de uma imagem única. Associando a noção de pontilhismo à poesia de Rodrigo Caldeira, talvez se possa arriscar uma leitura dos poemas de Inventário dos olhos como exemplos de uma possível poesia pontilhista. Como se, ao inventariar os objetos de um mundo descontínuo, informe, o poeta procurasse dar-lhe forma e sentido, representando o aparente caos com que é interpelado pela vida. O poema “D’eus” diz:

(...)

Respondi ao questionário da vida
com uma descontinuidade simples

(...)

Assim, Caldeira compõe, verso a verso, um catálogo de coisas com que os olhos se ocupam: noite vazia, sinal vermelho, beleza, dor, cinema, pichações, lixo, televisão, porta-retratos, corpo nu, pele, mão, perna, seio, sorriso enluarado, olhos. E cada leitor, com seu ponto de vista particular, se encarrega de reunir essas imagens em uma totalidade de sentido. É esse o jogo que o próprio poeta parece propor no poema “Coisas”, em que, à maneira de um demiurgo de si mesmo, depois de recensear suas ações, conclui, a respeito das coisas feitas: “fi-las para viverem livres no olhar de cada um”.
Mas tal liberdade (ainda que tarde) não impede que o poeta, em certos dias ou noites de angústia, sinta-se confinado ao cotidiano opaco e estéril, anestesiado pela rotina e pela falta de intensidade das coisas que vê e sente, como descreve o poema “Despropósito”:

(...)

a casa se chama apartamento
estou na parte a que chamam quarto
meu corpo jaz sobre o que se chama cama
meus olhos olham o teto

a casa se chama apartamento
estou na parte a que chamam banheiro
meus pés no frio do que se chama chão
meus olhos nos olhos do espelho

(...)

À medida que os poemas se sucedem, articulados num todo coeso, Inventário dos olhos ganha força expressiva e cresce em densidade, até o ponto culminante da escrita de Rodrigo Caldeira: o último texto do livro. Evocando tanto a “Quadrilha” de Drummond (1930) quanto o único poema em prosa de Cabral (“Os três mal-amados”, de 1943), “Raimundo (a fala de um mal’amado)” multiplica imagens surrealizantes para falar de saudade, solidão e amor, num caleidoscópio que mistura as cicatrizes da alma, as tatuagens do corpo e as pichações dos muros da cidade. De forma inventiva, o caráter lírico do poema é levemente torcido em suas duas frases finais, que tratam do destino dos personagens Maria e Raimundo. Aí, uma micronarrativa se introduz na trama de metáforas e metonímias, convidando a uma releitura do texto desde o início (agora sob a perspectiva de quase-conto poético).
Livro de uma poesia simples, sem malabarismos de linguagem, Inventário dos olhos tem o mérito de comunicar-se com o leitor não-especialista e de ativar os sentidos desatentos para os encantos da arte verbal. Sob esse aspecto, destacam-se poemas como “Amor corvo”, “Sombra”, “Corações disparados” e “Dois quartetos para o pensamento”, alguns dos melhores momentos do primeiro trabalho de um poeta que tem muito a crescer e a dizer.

[1]
Mestrando em letras na Universidade Federal do Espírito Santo e autor dos livros Microafetos (poesia, 2005) e Macromundo (poesia, 2010).

domingo, 2 de novembro de 2014


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Buenos Aires pode parecer uma cidade bonita para quem a contempla como volume levantado repentinamente no ermo. No hemisfério sul não há nada semelhante. Tem certo interesse para quem chega de fora, se ele não a imaginava possível; interesse que desaparece assim que se admite que ela pode existir e ser como a vemos. Para quem nasceu nela, ou a habita desde menino ou a avalia ligada a um texto conhecido, não interessa como cidade propriamente dita, nem mesmo como prodígio. Buenos Aires é uma cidade sem segredos, sem vísceras nem glândulas, sem dobras profundas nem cáries. Tudo o que ela é está à vista e, uma vez conhecida por fora, deixa de interessar. Carece de ontem e não tem uma forma verdadeira; quando terminar de crescer ou de formar-se, poderá ter outra muito diferente. (...)"

Ezequiel Martínez Estrada, in "Radiografía de la pampa" (1933)
Tradução: Wladimir Cazé

Foto: Archivo Fotográfic​o de Buenos Aires 1933-1980