
Com certa dose de realidade,
alguns logradouros e lugares verdadeiros de Salvador são citados (Instituto
Alemão, Sebo de Brandão), mas tudo acontece num mundo paralelo maravilhoso, onde
as pessoas podem (literalmente) voar. Beirando o terreno onírico e alegórico da
fábula, rezas e danças em grupo confluem para rituais de voo coletivo, liderados
pelo ousado Rasgo, que atrai os amigos Roque, o narrador e um casal (“meu amigo”
e sua mulher, Marikó) a explorar suas asas: “No retorno do voo, no controle da
respiração, voltávamos a habitar o mundo sem nos preocupar se estávamos imersos
na realidade ou não” (p. 17). Enquanto todos planam no ar e brincam nos galhos
das árvores, um outro personagem, Coruja, permanece confinado em casa, num
exílio íntimo interrompido somente pelos pequenos poemas que escreve e envia
pelo celular para “pessoas ilusórias, mas reais, pessoas que sua imaginação
criava” (p. 39).
São 70 poemetos (alguns breves
como aforismos) que o leitor encontra agrupados em 13 blocos colocados entre os
13 curtos capítulos. A justaposição de trechos narrativos em prosa e pequenas
sequências de poemas curtos, sem relação clara entre si, gera um ritmo de
leitura próprio, que desafia o leitor a uma apreensão dos fragmentos em um
compósito coeso. Essa dinâmica de leitura do todo e das partes não cessa ao
longo de todo o livro, garantindo a abertura do sentido do texto. Após a
palavra “Fim”, encontra-se, ainda, um poema um pouco mais longo, que contribui
para ampliar o quadro dos gêneros literários presentes em “O sol partido”.
Essa estrutura fragmentada não é
fortuita e reforça a temática da separação dos amigos, que também se expressa
no título: “sol partido” porque, ícone e síntese da cidade e de uma época da
vida, a estrela sob a qual todos se reuniam, e em torno da qual tinham suas
experiências de descoberta, em algum momento se quebrou (partiu-se) ou se foi
com o anoitecer (partiu). Imagens ligadas ao céu são frequentes no livro,
muitas vezes associadas com a subjetividade ou a emoção: “O sol é vermelho e
estava dentro do meu coração” (p. 23). Na mesma linha, alguns poemas se
destacam, como este: “Tempestade de sol / Banhando a manhã / Espalhando amarelo
/ Colorindo de azul / de verde / de dia / o coração vermelho do homem sem guia”
(p. 50).
O afastamento dos amigos que um
dia foram tão próximos permeia vários dos poemas, como o da página 71:
“Caminhamos por / caminhos diferentes. Sonhamos com / ninhos diferentes / nos portos
seguros / que, juntos, um dia, desenhamos”. O narrador, por sua vez, vê a si e
a seu grupo de companheiros como um bando de pássaros que aprendem a voar
juntos – “Só são livres os pássaros acompanhados” (p. 13) –, mas logo percebe
que cada um precisa partir para sua viagem individual.
“O sol partido” é um livro sobre certos
momentos de felicidade simples e efêmera e sobre uma fase da vida em que a
despreocupação é a tônica dos pensamentos e dos dias de quem tem o futuro pela
frente. Faz pensar, com alguma nostalgia, em tardes de cerveja, música e
poesia: “Meu amigo chegou trazendo dúzias de laranjas (...) Sentamos nós três
(...) e conversamos durante a tarde sem fim. Conversamos sobre a alegria das
crianças, sobre a força do coração, o perigo dos sonhos, a amizade entre povos
diferentes e o fim da vida (...)” (p. 38).
João Mendonça é jornalista e
publicou anteriormente o volume de crônicas e poemas “Tá gripado? Coma gelo!”
(2007). “O sol partido” é publicação resultante de edital de literatura da Secretaria
de Cultura da Bahia. Com a presença do autor, o livro foi lançado em Vitória no
dia 11 de setembro, no bar Cochicho (Rua da Lama). Sendo uma edição do autor,
“O sol partido” pode ser adquirido, ao preço de R$
20,00, através do correio eletrônico jjmaiamendonca@gmail.com.
Texto publicado no caderno "Pensar" do jornal "A Gazeta" de Vitória (ES) do dia 27/09/2014
Texto publicado no caderno "Pensar" do jornal "A Gazeta" de Vitória (ES) do dia 27/09/2014