“Democracia
em vertigem” (2019) é muito bem sucedido ao criar uma representação de um certo
vazio de poder na República brasileira por meio da montagem de cenas de rua
repletas de gente em protestos e manifestações contrapostas a planos
interiores, lentos e solenes, em palácios presidenciais desertos em Brasília.
Ao longo do filme, esse espaço de poder é ocupado sucessivamente pelos últimos
três ou quatro representantes do principal cargo executivo, cada um deles mais
ou menos próximos das aspirações populares profundas, numa narrativa que
descreve o processo de decomposição de uma democracia por interesse das elites
do Estado e das elites econômicas.
Os méritos e
qualidades técnicos e artísticos do filme são inúmeros, e uma lista de elogios
possíveis tornaria este texto muito extenso. Por isso, mesmo ciente de que
nenhum documentário jamais será capaz de abranger na totalidade o fenômeno que
retrata, quero ater estes comentários apenas a possíveis omissões que, por sua
importância, a meu ver, parecem enfraquecer a tese central de “Democracia em
vertigem”. São críticas que faço não em detrimento da obra, mas em prol do que
ela tem de melhor: o encadeamento dos fatos na elucidação do caminho percorrido
pelo país até aqui. Suponho que, para desenvolver plenamente seus argumentos,
com fidelidade ainda maior aos eventos históricos, o filme de duas horas
precisaria de mais uns 30 minutos de duração, de modo a incluir episódios,
momentos, personagens e instituições não apresentados na tela.
Antes, uma
observação quanto ao que me parece uma incorreção (política?). Minha primeira
objeção a “Democracia em vertigem” é quanto às imagens de fundo utilizadas nas
cenas da gravação do diálogo de Dilma-Lula (tomadas externas noturnas) e
Temer-Joesley (tomadas externas do nascer do dia), numa imprecisão factual que
levanta certa desconfiança quanto a seu intuito – na verdade, se trata mesmo de
uma inversão, já que é de amplo conhecimento que a primeira conversa se
deu em dia claro, num fim de manhã, e a segunda, já tarde da noite. Seria
casual ou intencional essa opção narrativa?
Passo agora
às omissões que me parecem mais importantes, seguindo a cronologia dos fatos
históricos: 1) A eleição indireta de Temer como presidente, pelo
Congresso, com características de conspiração, e a composição de seu governo
junto à oposição derrotada nas eleições de 2014 merecia uma abordagem um pouco
mais detalhada, por se relacionar diretamente ao tema central do filme: o
encolhimento da participação popular e o aprofundamento de um processo de
decomposição da democracia. 2) Não há no filme qualquer menção ou referência à
atuação um tanto dissonante de Teori Zavascki no contexto da Lava Jato, nem à
morte inesperada do ministro do Supremo Tribunal Federal. Aliás, dos grandes
protagonistas do período, o STF e o Judiciário como um todo são bastante
poupados de exposição em “Democracia em vertigem”: recordo apenas um
primeiríssimo plano de Ricardo Lewandowski (na sessão final do impeachment, no
Senado) e uma menção em off a Gilmar Mendes (no episódio da nomeação de Lula
como ministro-chefe da Casa Civil). Uma maior presença do STF no filme, atuando
como suporte ou contraponto (variando a depender do momento) aos outros
poderes, seria um elemento fundamental para a riqueza documental da obra,
esclarecendo a forma como o STF é aludido numa fala de Moro no Congresso, em
que ele defende seu próprio trabalho pelo fato de ser “sufragado pelas altas
instâncias” e sugere que questionar suas decisões como juiz seria questionar o
próprio Judiciário. 3) Não há, no documentário, registro da intimidação (mais
propriamente, ameaça) ao STF feita pelo comandante do Exército, general Villas
Bôas em abril de 2018, com o assentimento tácito de Temer (que não repreendeu
publicamente seu subordinado pela indevida ingerência política no processo do
julgamento de Lula). Tal como o Judiciário, o Exército dos dias de hoje pouco
aparece no filme, embora tenha gradualmente ocupado, ao longo dos anos que são
acompanhados pela narrativa, um espaço cada vez maior na cena política,
fenômeno no qual a intervenção de Villas Bôas foi um dos momentos culminantes.
Por se tratar, neste caso, de um filme sobre a decomposição da democracia, que
expõe tão bem o autoritarismo da ditadura civil-militar anterior, ter incluído
esse episódio seria essencial para pintar o quadro completo de aparente ruptura
em curso. 4) A elipse entre a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro também
compromete, em parte, a força da tese do longa, ao não abordar as eleições de
2018 e as inúmeras anormalidades ocorridas durante a campanha (a proibição de
entrevistas de Lula à imprensa, o atentado a Bolsonaro, a ausência do candidato
vencedor dos debates mais importantes, o disparo em massa de notícias falsas).
Ao omitir a figura de Haddad, “Democracia em vertigem” dá a entender uma
continuidade natural entre a prisão de Lula e a vitória de Bolsonaro,
contribuindo indiretamente (espero!) para consolidar como legítima a eleição
deste como presidente e inserindo o atual estado de coisas numa falsa
“normalidade” institucional – impressão que acaba por atenuar (ainda que de
maneira muito sutil) a gravidade do próprio fenômeno que prentende documentar.
O filme
termina com um plano sequência aéreo que parte do Congresso Nacional em direção
ao centro de Brasília, numa tomada que espreita na direção oposta ao frame de
encerramento de “Tropa de elite 2”, de José Padilha (que focaliza o palácio do
Congresso do ponto de vista de quem está no centro da capital). Esse
contraponto com uma obra bastante anterior (2010), que já discutia o tema da
infiltração do crime organizado nas polícias do Rio de Janeiro e nos três
poderes, estabelece uma discreta ligação de “Democracia em vertigem” com um dos
principais problemas em pauta na fase Bolsonaro: a infiltração das milícias num
aparente vazio de poder político que, com recorrência, domina o espaço público
brasileiro – vazio que o filme de Petra Costa representa com habilidade nos já
citados e insistentes travellings no interior da residência presidencial
oficial desocupada, como a perguntar: Quem virá preencher esse espaço? Questão
pertinente, na medida em que, em política, não existe tal vazio: sempre haverá
alguém disposto a preencher o espaço e capaz de angariar apoio para tanto. As
linhas que se entrecruzam no gramado da Esplanada representam o enorme xis da
questão de um enigma nacional, mas também apontam caminhos a serem
coletivamente traçados, percorridos e, se necessário, invadidos pela gente
brasileira.
Wladimir Cazé
20/06/2019
[texto publicado no jornal "A Gazeta", de Vitória/ES, em 29/06/2019]
[texto publicado no jornal "A Gazeta", de Vitória/ES, em 29/06/2019]
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