quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Montagem de sensações que esmiúça o caos discursivo

Epistolário e livro de viagens, Na capital sul-americana do porco light, de Catarina Lins (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018) é composto por dez escritos que provocam movimentos de leitura em muitas direções, na medida em que sua poética intenta traçar linhas imaginárias entre certos objetos e delimitar território onde tudo entrará como parte do poema: “Meridiano: […] ligação […] encontro entre heterogêneos.” (p. 14). O poema é um navio que, ao encalhar em meio a detritos na corrente da linguagem, pode, justamente nesse impasse, encontrar o silêncio, o sentido: “[…] não havendo / calado / isto demarcava, sim, o silêncio / nos poemas endereçados / às geleiras” (p. 16). Catarina organiza seus textos com formas recolhidas: cartas, e-mails, perguntas, trechos de verbetes enciclopédicos, citações (identificadas ou não), sonhos, listas, lembranças, aproximando deserto e oceano, incêndio e baixas temperaturas, presença e ausência, o eu e o outro (“encontro intenso”, p.  22) e o eu consigo mesmo. Todos os textos do livro interpelam um interlocutor ou interlocutora, que varia de uma amiga ou do próprio eu do poema a um amor, à poeta Hilda Hilst, a alguém da família que é bem mais velho, a outro mais novo, ou, ainda, a outros indeterminados (o/a leitor/a?). Certa nostalgia derivada da falta de uma dimensão temporal mais densa é compensada pelos deslocamentos físicos reiterados e representada de maneira fragmentária, na taquicardia da comunicação instantânea contemporânea. Como pano de fundo ouve-se a evocação a) de uma cidade não especificada que “ainda está em guerra”, mas na qual “as casas […] // […] // são onde duas ou três coisas importantes / ainda acontecem” (p. 45) – cidade que talvez seja o local da escrita posterior, em poemas, da experiência estrangeira –, b) da cidade da infância (em que “crianças / […] brincavam ao redor do mundo / nos túneis, jardins, / nos monumentos da guerra” (p. 37) ou c) do turismo num centro de São Paulo com “acampamentos em volta” (p. 59); mas essas alusões a uma realidade por vezes incômoda são como vestígios de perturbações que se passam a certa distância, não somente no espaço mas também no tempo (a letra “H.” com prudência substitui a menção ao chamado “holocausto” da segunda grande guerra do século passado). É interessante observar como o uso das aspas, entre outros recursos presentes nesse livro, com frequência produz uma ironia relacionada com alguma ideia já enunciada num poema anterior: da “Arte” (sem aspas e em caixa alta, p. 9) para “a grande arte” (entre aspas e em caixa baixa, p. 60), da “História” (sem aspas e em caixa alta, p. 48) para uma “historicidade” (entre aspas, em caixa baixa e em itálico, p. 53). O estilo da poeta atinge resultado mais intenso e coeso em “O poema demora” ou no díptico “Para que servem as manhãs se não para isto?” e “Empédocles” (os dois últimos, ligados pela mesma reflexão sobre por que “no mundo dos sons, / […] manter a continuidade”, ps. 43-44 e 47) – nesses três textos, sua escritura opera um trabalho de montagem de sensações que, demiurgicamente, esmiúça o caos discursivo, “separando tudo: sonho, água, devaneio / loucura e olhos” (p. 49).

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